O sistema judicial é seletivo e sacrifica o mais fraco
Na semana que passou, o site Congresso em Foco publicou reportagem sobre os disparates do sistema
penitenciário brasileiro.[1] Chama a atenção para o fato de que o sistema penal como um todo é
seletivo, pois considera crimes ou pune de modo mais severo atos que podem ser
praticados, preponderantemente, pelas camadas menos favorecidas da população.[2] O resultado disso é visto nas prisões brasileiras.
A matéria confirma o que, há poucos dias, disse o ministro Luís Roberto
Barroso: “Para ir preso no Brasil, é preciso ser muito pobre e muito mal
defendido. O sistema é seletivo, é um sistema de classe. Quase um sistema de
castas”.[3]
Pouco ou nada falamos sobre esse estado de coisas. Mas, como afirmei em
outro texto desta coluna, não se trata de mero conformismo. Afinal, não apenas
vivemos como se não tivéssemos nada a ver com problemas como esses. Beirando ao
cinismo, chegamos a encontrar justificativas para que as coisas sejam como são.[4] Assim como, por exemplo, a mesma sociedade que critica a violência
decorrente do tráfico de drogas o alimenta, consumido carreiras em baladas
chiques.
Os problemas acontecem não apenas no âmbito do processo penal. O acesso
das pessoas mais pobres à Justiça, no âmbito civil, também é difícil. Exemplos:
a Defensoria Pública ainda encontra-se deficitária, em boa parte do Brasil;[5] em alguns estados do país, o valor das custas processuais é
excessivamente elevado; as sedes dos tribunais, em muitos casos, encontram-se
muito distantes da comarca ou subseção judiciária, o que torna dispendioso o
deslocamento do advogado da parte para acompanhamento da causa;[6] etc.
Mas, se de um lado faltam investimentos ou gestão de recursos
financeiros que olhem para as pessoas mais fragilizadas, o que há, do outro
lado?
Há exemplo recente, que bem demonstra o modo como o Estado pode criar
leis “seletivas”, também no âmbito civil. Refiro-me à Lei 12.663/2012, conhecida como “Lei da Copa”.
Tenho defendido que essa lei padece de inconstitucionalidade.[7]
Há na “Lei da Copa” disposições que revelam a absoluta subserviência do
Estado brasileiro à Fifa, como o artigo 23, segundo o qual “a União assumirá os
efeitos da responsabilidade civil perante a Fifa, seus representantes legais,
empregados ou consultores por todo e qualquer dano resultante ou que tenha
surgido em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado
aos Eventos”, ou o artigo 53, que isenta “a Fifa, as Subsidiárias FIFA no
Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados” do adiantamento
de custas judiciais e estabelece, ainda, que eles “não serão condenados em
custas e despesas processuais”.[8]
O artigo 68 da Lei 12.663/2012, ao afastar a incidência de vários
dispositivos da Lei 10.671/2003(Estatuto da Defesa do Torcedor), viola, a meu ver,
os artigos 5º, inciso XXII, e 170, inciso V, da Constituição, mas é, sobretudo,
um dispositivo imoral, concebido com o intuito de favorecer uma pessoa e o grupo com ela
relacionado em detrimento do torcedor, protegido pela Lei 10.671/2003.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que isenta a Fifa de uma série de
obrigações, a referida lei cria tipos penais específicos que tutelam os
interesses da entidade (cf. artigos 30 ss. da “Lei da Copa”).
Vê-se, pois, que a “Lei da Copa” foi criada para proteger uma pessoa ou
grupo em detrimento do povo brasileiro. Nenhuma surpresa, pois, como afirmam os
dirigentes da Fifa, menos
democracia é melhor para se organizar uma Copa.[9]
O Estado e seus principais agentes, quando realmente querem, agem para
mudar as coisas. Mas o Estado, em todos os seus níveis e dimensões, existe para servir à sociedade, e não a uma pessoa ou a um determinado grupo. Deve o Estado atuar com
o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, como diz a
Constituição (artigo 3º, inciso I). Solidário é o Estado se tem interesse na sociedade, pois solidariedade significa, essencialmente, importar-se e, no caso, o Estado deve importar-se, essencialmente, com o povo (CF,
art. 1º, parágrafo único). Esse, pois, é o sentido, tanto como motivo da existência quanto como rumo
a ser seguido pelos órgãos do Estado.
Assim, todos os agentes públicos devem atuar em prol da sociedade, e não do próprio aparato estatal e, evidentemente, não de interesses pessoais,
próprios ou de pessoas ou grupos específicos, em detrimento do bem comum. Não sendo assim, restará ao Estado
apenas a forma estrutural, desvinculada do serviço que
lhe dá sentido, que é cuidar dos interesses do povo.
O sistema judicial, penal ou civil, não pode ser seletivo, ou de castas.
[2] Defendo,
na obra Constituição
Federal comentada (2. ed., Ed. Revista dos
Tribunais, 2013, comentário ao artigo 5.º, XL), que a criação de tipos penais
deve ser orientada pelo arcabouço constitucional. Há situações em que a norma
constitucional expressamente destaca alguns bens jurídicos, como merecedoras de
atenção do legislador por ocasião da elaboração de leis penais. Esse modo de
pensar, segundo nosso entendimento, não deve ser considerado apenas quando há
disposição expressa no texto constitucional, acerca da criminalização de
determinada conduta. O bloco constitucional, integralmente considerado, deve
servir de orientação, pautando o legislador na eleição de condutas a serem
criminalizadas e no estabelecimentos de penas que lhes sejam adequadas. Com
efeito, há valores claramente estabelecidos na Constituição com primazia. Assim, por
exemplo, devem merecer tratamentos diferentes, de um lado, as condutas que
contrariem os fundamentos e objetivos do Estado brasileiro (artigos 1.º e 3.º
da Constituição), ou que, sacrificando direitos fundamentais, tenham elevado
alcance social, e, de outro, as infrações penais de menor potencial ofensivo
(CF, artigo 98, I). As regras que constroem tipos penais, assim, devem
concretizar a aspiração constitucional.
[4] Cf. o
que escrevi no texto intitulado “Pelo fim da jurisprudência defensiva: uma
utopia?”, nesta coluna, disponível aqui.
[6] No
caso da Justiça Federal, a existência de apenas cinco Tribunais Regionais
coloca-os ainda afastados do local em funciona o juízo de primeiro grau. A
Emenda Constitucional 73/2013 inseriu o § 11 no artigo 27 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, para criar os Tribunais Regionais
Federais da 6.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª Regiões. Os efeitos da referida Emenda, porém,
foram suspensos por liminar concedida pelo Presidente do STF, Ministro Joaquim
Barbosa (cf. ADIn 5.017-MC, j. 17.07.2013, disponível aqui).
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